domingo, 10 de novembro de 2013

Por que não é inocente “comer” leite e laticínios?



Analogamente ao que ocorre com o consumo “inocente” de ovos, o consumo de leite e derivados também não deixa margem alguma para a “inocência” na escolha dietética. É bom lembrar, logo de início, que “todas” as vacas “leiteiras” são abatidas, sem dó nem piedade. O que as diferencia das condenadas ao “corte” não é que elas “pelo menos, podem viver”, e sim que a vida dolorosa à qual são condenadas dura muito mais tempo do que a vida à qual são condenados os indivíduos destinados à indústria da “carne”. 

Grande parte das vacas produzidas para fornecer leite pode viver, pelo menos uma parte de suas vidas, ao ar livre, pastando. Mas isso não implica concluir que suas vidas são boas, ou que tomar o leite tirado delas não tem qualquer implicação ética relevante. As vacas que vivem em lugares muito quentes e secos são geralmente mantidas em confinamento, pois não há grama que as possa alimentar convenientemente. Nesse caso, elas são alimentadas mecanicamente por aparelhos que despejam ração e servem água. Não há para o animal qualquer chance de escolher o que vai comer. Quando confinadas em galpões, geralmente estes recebem um número muito maior do que o conveniente para garantir o bem-estar físico do animal e permitir que forme seu grupo social ou estabeleça a hierarquia social necessária ao seu bem-estar emocional. As vacas são presas por uma coleira e assim mantidas, com as cabeças próximas ao comedouro. Elas não têm liberdade de mover-se, trocar de lugar, escolher o melhor ângulo para receber a comida. 

As vacas, escrevem Singer e Mason, “possuem intensa vida emocional. Elas formam laços de amizade com duas, três, quatro ou mais vacas e, se puderem, passam a maior parte do tempo juntas, muitas vezes lambendo e cuidando umas das outras. Por outro lado, elas também podem desenvolver antipatia por outras vacas e guardar ressentimento por meses ou até anos. 

A vaca destinada à produção de leite vive grávida 9 de cada 12 meses. Em média, tiram-se 20 litros de leite por dia de cada uma dessas vacas. “Para aumentar ainda mais a produção do leite [escrevem Singer e Mason], [há produtores que] aplicam injeções, duas vezes por mês, de BST, ou somatotrofina bovina, um hormônio de crescimento geneticamente desenvolvido. O BST foi proibido no Canadá e na União Européia em função das preocupações com a saúde e o bem-estar das vacas leiteiras, mas é amplamente utilizado nos Estados Unidos. Ele aumenta a produção de leite em cerca de 10%, mas o local da injeção pode ficar inchado e sensível. O BST também pode aumentar problemas de mastite, uma infecção mamária dolorosa que aflige cerca de uma em cada seis vacas leiteiras. Os dois estresses acumulados e praticamente ininterruptos, gravidez e lactação, esgotam o metabolismo das vacas. Somente nos Estados Unidos são abatidas anualmente mais de um milhão de vacas em razão de sua fraqueza para continuar a produzir o leite ou manter mais uma gestação. Quem bebe leite, come iogurte e queijos, deve lembrar-se dessas mortes também, não apenas da morte da própria vaca que será abatida depois de ser explorada por dois ou três anos pela extração de seu leite. Somadas às mortes das mães, é preciso contar os 9% de bezerros que morrem antes do “desmame”, por terem sido gestados em condições de extremo cansaço e fraqueza das mães. Essas mortes ocorrem no primeiro ou segundo dia do nascimento. 

Os bezerros, na indústria do leite, são amamentados apenas por dois dias, enquanto o leite é colostro. A finalidade para a qual nascem não é para que possam gozar suas vidas, mas causar o disparo hormonal no organismo de suas mães, que as leva à produção de leite. Nascidos, os bezerros que sobrevivem ao desmame no segundo dia de vida, quando acaba o colostro, ou são abatidos, ou enviados para a indústria da vitela, que os manterá num caixote sem luz solar, sem espaço para que possam pular, mover-se ou prover-se, e sem alimentação nutritiva, pois o objetivo é que sua carne fique pálida e macia, ao gosto dos comedores humanos. 

Por isso, quem toma leite, come iogurte e queijo deve ter em mente a morte das vacas por exaustão, o abate delas quando não são mais eficientes na produção de leite, e a morte de todos os seus filhos, seja por fraqueza, seja após sua sobrevida nos caixotes escuros da indústria de vitela. Afirmar, portanto, que consumir leite não implica em “matar” ou “torturar” animais é uma impropriedade. Implica, sim. Se queremos ser éticos em nossa dieta, é preciso conhecer a realidade da produção de leite. 

Cada vaca é usada para gestar, no mínimo, três vezes. Nove meses de gestação, três meses de pausa e nova inseminação artificial. Cada parto representa para a mãe a dor e o sofrimento de ver seu filho arrancado dela no primeiro, segundo ou terceiro dia de vida. Markus sugere que “o trauma causado por essas separações é uma razão pela qual algumas vacas acabam sendo mandadas para o matadouro mais cedo. Na maior parte dos casos, as vacas são levadas para o abate, ou porque ficaram doentes, ou porque a quantidade de leite caiu abaixo dos níveis tolerados pela margem de lucro dos produtores. Mas, em pelo menos 1% dos casos, as vacas são mortas por perderem sua doce disposição psicológica, por tornarem-se perigosas. Quando levadas para a ordenha mecânica, algumas dão coices nos trabalhadores que operam as máquinas de tirar leite. Uma vaca leiteira pode pesar meia tonelada, e seu coice pode ser mortal. As vacas que repetidamente tentam escoicear os trabalhadores são enviadas para a morte, pois são perigosas, não importando quanto leite produzem.” 

O tempo médio de vida de uma vaca, escrevem Singer e Mason, pode ser de até 20 anos, mas as destinadas a produzir leite vivem apenas de 5 a 7 anos. Elas são abatidas quando cai a produção do leite. Cada vez que dão à luz, passam pela mesma agonia de terem seus filhos levados embora nos três primeiros dias de vida. A mãe fareja os resíduos de sangue e placenta que lambeu do filhote, e muge por dias ou mesmo semanas. Muitas sofrem este luto a ponto de entrarem em depressão. 

Além do sofrimento pelo qual passam as vacas leiteiras ao terem seus filhos tirados dela e ao terem que se submeter a uma nova gestação passados três meses após encerrada a anterior, o consumo de leite também responde pelo alto volume de poluição aérea nas regiões nas quais as vacas são criadas. Na digestão da dieta não natural à qual são forçadas para produzirem mais leite, seu sistema digestivo produz uma imensa quantidade de gás metano, responsável pelo aquecimento global. Os dejetos depositados a céu aberto são poluidores do ar, do solo e das águas, além de contaminarem o lençol freático da região leiteira. Tudo isso torna o consumo de leite anti-ético.

Continua...

*Sônia T. Felipe é doutora em Teoria Política e Filosofia Moral com pós-doutorado em Bioética-Ética Animal, co-fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência, co-autora de ‘A violência das mortes por decreto’ (Edufsc), ‘O corpo violentado’ (Edufsc), ‘Justiça como Eqüidade’ (Insular) e ‘Por uma questão de princípios’ (Boiteux), ‘Ética e experimentação animal: argumentos abolicionistas’ (Edufsc), colaboradora nas coletâneas ‘Éticas e políticas ambientais (Univ.Lisboa), ‘Filosofia e Direitos Humanos’ (Edufce), ‘Instrumento Animal’ (Canal 6). É professora e pesquisadora dos Programas de graduação e pós-graduação em Filosofia, e do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC. Investigadora Permanente do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Membro do Bioethics Institute da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento, Lisboa.

Nota da blogueira: 

Gente, é 'nojento' que nós, humanos, possamos agir assim incitando a prática de tanta crueldade contra os animais pelo ignóbil vício da gula. Não se justifica. Como somos pequenos! É verdade que a maioria de nós sequer para para pensar que por trás daqueles saborosos e suculentos pratos aos quais sucumbimos havia um ser vivo que sofreu tanto para saciar nosso instinto. Mas, sempre é tempo de começar a refletir e mudar. Fica a dica.