domingo, 13 de outubro de 2013

A inocência perdida

Continuação do texto anterior - "Ética no Ato de comer"

Sônia T. Felipe*

Ovos, leite, laticínios, carnes e outros alimentos ou produtos de origem animal, tais quais a gelatina e o mel, por exemplo, são considerados alimentos ricos em proteínas, cálcio e minerais, e declarados imprescindíveis à saúde do organismo humano. Ao impor o padrão alimentar que atende largamente aos interesses do agronegócio, dominante ao redor do planeta desde a década de 70 do século XX, a moralidade na qual fomos formatados nos forçou à “inocência” em nossas escolhas dietéticas. Jamais, em qualquer programa de TV que aborde a questão da alimentação e saúde, são apresentadas ao telespectador as cenas que estão no ar sem serem transmitidas ao vivo em todos os galpões de confinamento completo de aves, suínos e bovinos, e nos abatedouros que os degolam e esquartejam em ritmo industrial, mecanizado.


Essa pretendida inocência no ato de escolher o que se coloca no prato não é típica apenas dos onívoros. Considerando-se a classificação dos tipos de escolha alimentar praticados hoje ao redor do planeta, feita em The New Vegetarians, de autoria de Paul R. Amato e Sonia A. Partridge, encontramos igual resistência moral naqueles que se dizem vegetarianos, mas incluem em sua dieta produtos de origem animal, tais quais, leite, ovos, mel, gelatina, etc. Na lista de vegetarianos os autores citam: “(1) Ovo-lacto-vegetarianos, consomem ovos e laticínios, menos carne; (2) lacto-vegetarianos, consomem laticínios, mas não ovos e carnes; (3) ovo-vegetarianos, comem ovos mas não laticínios e carnes; (4) veganos, não comem carnes, laticínios e ovos (e geralmente também não usam mel); (5) vegetarianos macrobióticos, vivem de grãos integrais, vegetais marinhos e do solo, leguminosas e missô (uma pasta altamente proteica feita de grãos e soja fermentados); (6) higienistas naturalistas, comem alimentos vegetais, combinam alimentos, e praticam jejuns periódicos; (7) crudívoros, comem apenas alimentos crus de origem vegetal; (8) frugívoros, consomem frutas, nozes, sementes e certos vegetais; e (9) semivegetarianos, incluem pequenas porções de peixe e ou frango em sua dieta.”4


Para que melhor possam compreender porque acima escrevi que não há uma diferença fundamental entre os onívoros e os demais comedores que incluem produtos de origem animal em sua dieta, especialmente leite e ovos, gostaria de lembrar que a questão ética implicada na consideração da dieta inclui em todos os casos a morte não justificada de animais. Ao contrário do que os ovo-lacto-vegetarianos pensam, comer produtos derivados do leite e comer ovos adquiridos da rede de comércio de alimentos implica em torturar e matar animais, e em número maior do que geralmente se supõe.


Por que não se pode ser inocente ao “comer” ovos?


Animais de quaisquer espécies nascem em liberdade física, quer dizer, o nascimento representa o corte do suprimento recebido ao longo da gestação, não importa se esta se dá num útero, ou num ovo. Podemos definir um animal como o tipo de ser vivo que ao nascer tem sua fonte de provimento suspensa, e passa a depender do provimento que deve chegar do ambiente natural e social que o cerca. Para viver, todo animal precisa aprender a identificar a matéria que contém nutrientes necessários ao seu desenvolvimento e sustento, e reconhecer a matéria que não os contém. Animais, portanto, são distintos dos vegetais, por terem de prover seus organismos num ambiente aberto, o que requer liberdade física. Isso tem seu lado bom, e seu risco. Depender de nutrientes exteriores mas não colados ao corpo, força o animal a procurá-los. Tal procura é parte do processo de construção da mente específica do animal, seja ele humano, ou, não-humano. Se o animal for privado da liberdade de “mover-se para autoprover-se”, destruiu-se o que o caracterizaria. Tudo o que se fizer a ele daí por diante já não o ajudará a ser um animal “feliz”. Por isso, leis bem-estaristas de proteção aos animais criados em confinamento completo são tão hipócritas quanto o é a lei do “abate humanitário”.


Galinhas não fogem à regra da condição de serem animais. Mas as que são forçadas a nascer para servir à indústria dos ovos, têm sua liberdade física completamente atrofiada pelo processo industrial de produção ao qual estão submetidas. Menos de um dia após nascerem, os pintainhos são jogados numa esteira rolante para a “escolha” dos machos, que são descartados. O descarte pode ser feito jogando-se todos num saco plástico, que ao encher será fechado, levando-os à morte por sufocação, ou numa máquina de triturar, vivos. Muitos podem estar perguntando: por que os matam e não os criam para abate? Porque os machos que nascem dos ovos selecionados para a produção de galinhas “poedeiras” não prestam para a indústria da carne do frango. Eles demoram muito para crescer. Com base nos dados de 2002, pode-se estimar que, só nos Estados Unidos, são mortos pela indústria de ovos algo em torno de 300 milhões de pintinhos machos por ano.5


A agonia das aves produzidas na indústria de ovos não acaba com o descarte brutal dos pintainhos machos no primeiro dia após o nascimento. Neste dia começa o tormento dos pintainhos fêmeas. Este tormento durará até dois anos e meio, em média. Para começar, todas são levadas à máquina que corta um terço de seu bico, e cauteriza o toco que ali resta. A lâmina em brasa faz o serviço, conduzida por um trabalhador que não tem autorização da empresa para anestesiar o bico do pintainho fêmea. A parte do bico cortada é completamente enervada. Sem anestesia, o processo doloroso pode prorrogar-se de 5 a 6 semanas, conforme o descreve Erik Marcus.6 Os animais também não recebem analgesia após o procedimento.


A razão da debicagem é o confinamento ao qual essas fêmeas serão condenadas para o resto de suas vidas. Devido ao grande número de galinhas alojadas num só galpão, e ao fato de que estarão confinadas num espaço que não chega ao de uma caixa pequena de sapatos, elas estressam de tal modo que passam a bicar tudo o que estiver ao seu alcance. Na indústria de ovos não há atendimento individual às aves. Se muitas forem bicadas formar-se-ão ferimentos que as levarão a infecções e à morte. Não recebendo qualquer tratamento veterinário personalizado, aves bicadas morrem aos montes.


Aos 120 dias de vida as pequenas aves destinadas ao processo de postura são levadas para o confinamento definitivo, do qual sairão mortas por exaustão, ou destinadas ao abate, quando estiverem “gastas”. O espaço que recebem nos galpões de confinamento não permite sequer que possam esticar as asas. E assim, sem qualquer possibilidade de exercício físico, são forçadas a viverem mais 800 dias, sem jamais terem ciscado a terra, colhido insetos e minhocas, comido areia, ou formado grupos sociais e vivido nesses grupos de forma prazerosa, uma necessidade específica das galinhas.


O piso aramado das gaiolas nas quais as galinhas são alojadas tem o formato de grade, para permitir que os excrementos caiam. Os arames causam ferimentos nos pés. Quando as feridas cicatrizam, o tecido se forma envolvendo o arame. Com os pés aderidos ao arame, as galinhas são impedidas de se levantarem ou de trocarem de posição. Quando o tecido se rompe com o peso do corpo e o esforço do animal para livrar-se da algema, os pés caem no vão aramado. Se a galinha não consegue mais voltar à posição usual, ela morre sufocada, de fome ou de sede, pois não consegue alcançar os servidouros de água e comida.7


O fato de serem forçadas a pôr ovos ininterruptamente leva a uma perda enorme de cálcio. A consequência mais dolorosa é a fratura óssea. Dado que as galinhas não recebem tratamento médico individualizado, tais fraturas são a causa de pelo menos 30% das mortes de “poedeiras”. Esse é o percentual de galinhas com fratura óssea que chegam ao local do abate.8


A agonia das galinhas poedeiras não tem fim. Devido ao esforço diário para expelir os ovos, um dos males mais dolorosos e fatais para elas é o prolapso do útero. Ao sair, o ovo acaba puxando junto o útero, que não tem como voltar para seu lugar, a não ser com ajuda médica. Mas, para restabelecer a posição normal, o procedimento pode levar até 1 hora. Dado que o acidente ocorre em grande número de “poedeiras”, os custos do pagamento de 1 hora de trabalho por animal, para o veterinário colocar o útero manualmente de volta em seu lugar, tornam o negócio inviável. As galinhas que sofrem prolapso do útero morrem em agonia. Essa agonia torna-se ainda maior quando as outras começam a bicar e devorar o útero prolapsado. Somente nos Estados Unidos morrem mais de 2 milhões de galinhas por ano, por prolapso não tratado. A morte em agonia dura, no mínimo, dois dias.


As galinhas que não sofrem ferimentos nos pés por causa da grade de arame sobre a qual têm que ficar em pé, as que não sofrem de fraturas devido à descalcificação óssea, e as que não morrem em agonia por prolapso do útero, seguem em vida forçadas pelas doses maciças de ração e exposição à luz artificial, pondo ovos ininterruptamente. Quando sua produtividade diminui, e o empresário não pode baixar o número de ovos oferecidos ao mercado por dia, elas são enviadas para o abatedouro, virando alimentos processados (sopas, pós, e embutidos). Se o empresário fornece para consumidores com alguma variação na demanda, as “poedeiras” passam por um “choco” forçado, o que as leva a renovar a carga hormonal e voltar aos níveis de produtividade anteriores. “Durante o choco forçado, descreve Marcus, as galinhas não recebem qualquer alimento por sete a quatorze dias. A luz é diminuída para imitar as condições do inverno, estressando o corpo por antecipação da primavera. Muitas semanas após o choco forçado a produtividade volta aos níveis lucrativos normais. Mas o choco forçado tem um custo alto. Mata as aves mais fracas, e sem dúvida causa a todas, sofrimento – durante o choco elas perdem até 30% de seu peso corporal.”9


Dado que o valor comercial das galinhas “gastas” é baixíssimo, há produtores que sequer se dão ao trabalho de as vender para abatedouros. Nos Estados Unidos há produtores que as colocam simplesmente em contêineres e os enterram, sem antes matá-las. Em San Diego, Califórnia, um produtor foi denunciado porque os vizinhos o viram usando o triturador de madeira para triturar as galinhas “gastas” vivas. No inquérito, o produtor reconheceu ter praticado isso com 30 mil galinhas. O médico veterinário, Dr. Gregg Cutler, membro do comitê de bem-estar animal da American Veterinary Medical Association, embora tenha declarado não haver autorizado os produtores a usarem o triturador de madeira para dar fim às galinhas “gastas”, afirmou concordar com tal método de extermínio. Há produtores que se livram das galinhas em lixões.10 Comer ovos, portanto, não é uma forma “mais ética” de cuidar de sua dieta. Por trás de um ovo estão todas as cenas descritas acima, e outras que não dá tempo para descrever aqui. Mas, pode estar pensando quem é ovo-vegetariano, o que haveria de errado em comer ovos de galinhas criadas soltas nas fazendas de produção orgânica?


As galinhas produzidas nas fazendas orgânicas são irmãs dos pintainhos machos mortos no primeiro dia de vida. Analogamente ao que se passa com as galinhas confinadas em gaiolas para a postura de ovos, também as galinhas criadas soltas nas fazendas orgânicas são enviadas para o matadouro quando não põem ovos na quantidade suficiente para manter o negócios dos ovos rentável ao produtor. Se não forem mandadas para a morte, essas galinhas orgânicas podem viver até oito ou nove anos, ao contrário das que são abatidas ao fim do período de postura. Mas, para que suas vidas não implicassem dor e sofrimento, e para que suas mortes não fossem uma execução sumária, as galinhas criadas soltas deveriam receber cuidados médicos, ter espaço para viverem bem, seguindo os padrões do bem próprio da espécie galinácea, e alimentação nutritiva. Os custos desses três cuidados tornariam o ovo da galinha orgânica quatro vezes mais caro a unidade, segundo Marcus.11 Singer chega a referir-se a sete vezes mais caro o preço de um ovo de galinha orgânica, do que o de galinha confinada.12


Ao final da vida de uma galinácea usada para pôr ovos, teriam sido consumidos aproximadamente 500 Kg de grãos,13 o que tem seu equivalente em excrementos acumulados, contaminação do solo, das águas de superfície e do lençol freático, do ar e multiplicação dos microorganismos, bactérias e viroses fomentada com a densidade populacional galinácea. O espaço para manter vivas todas as galinhas que deixam de botar ovos de forma eficiente teria que ser também, pelo menos, quatro vezes maior do que o necessário para manter vivas as galinhas “ativas”.


Cientes dos custos altíssimos que a produção orgânica e ética de ovos representa, os produtores não chegam a adotar o princípio ético da não-maleficência e da beneficência em relação à vida das galinhas usadas para a fabricação de ovos. Nos Estados Unidos, afirma Singer, não há produtores de ovos orgânicos genuínos. Lá, chegou-se apenas ao meio do caminho da abolição. O que se faz é aumentar o espaço das gaiolas, ou confinar as poedeiras em ambientes fechados mais amplos. Raras são as que podem ciscar fora do galpão nos meses da primavera.14 De qualquer modo, todas são enviadas à morte ao fim do ciclo produtivo. Comer ovos é, portanto, ser favorável à matança das galinhas que os põem.


Ao mesmo tempo em que parecem mais éticos do que os produtores de ovos que mantém as galinhas confinadas em gaiolas do tamanho da caixa de um sapato, os produtores orgânicos seguem os mesmos padrões capitalistas de produção, pois os consumidores de ovos de galinhas soltas não se incomodam com o fato de que as galinhas que põem ovos para eles são mortas como as demais ao final de seu ciclo de postura “eficiente”. Comer ovos, portanto, não pode ser considerado mais ético do que comer carne ou seus derivados. Dor, sofrimento e morte compõem o cenário de cada ovo, apesar de sua aparência tão inocente e lisinha.


Continua...

*Sônia T. Felipe é doutora em Teoria Política e Filosofia Moral com pós-doutorado em Bioética-Ética Animal, co-fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência, co-autora de ‘A violência das mortes por decreto’ (Edufsc), ‘O corpo violentado’ (Edufsc), ‘Justiça como Eqüidade’ (Insular) e ‘Por uma questão de princípios’ (Boiteux), ‘Ética e experimentação animal: argumentos abolicionistas’ (Edufsc), colaboradora nas coletâneas ‘Éticas e políticas ambientais (Univ.Lisboa), ‘Filosofia e Direitos Humanos’ (Edufce), ‘Instrumento Animal’ (Canal 6). É professora e pesquisadora dos Programas de graduação e pós-graduação em Filosofia, e do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC. Investigadora Permanente do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Membro do Bioethics Institute da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento, Lisboa.

Ética no ato de comer

Sônia T. Felipe*

Talvez o ato de comer seja, entre tantos outros já analisados pela sociologia,a antropologia, a economia e a ciência política, o único considerado realmente natural, o que nos leva a pensar que, se comer é algo “natural”, nesta prática não cabe qualquer consideração ética. A filosofia não trata da questão do “comer”. Se é natural, então não há questão filosófica alguma para ser tratada, pensam os filósofos. Fazer uma reflexão ética implica em raciocínios que nos tiram do conforto da moralidade naturalizada. Esta admite como “valor” a ser preservado tudo o que se mantém pelo costume. Considera-se que aquilo que consegue manter-se como prática institucional em uma dada sociedade tem força e valor suficientes para continuar a ser mantido. A alimentação e as regras de ingestão, a forma como o alimento é apresentado ao comedor e a mecânica de sua produção, tudo isso é considerado “natural”. Então, concluímos, quando comemos não praticamos qualquer ato imoral.


Comer, nas sociedades industrializadas e nos grandes centros urbanos, no entanto, deixou de ser uma prática que interessa investigar apenas do ponto de vista antropológico e sociológico, isto é, com métodos meramente descritivos, destituídos de qualquer crítica e despidos de quaisquer juízos de valor.


O uso das mulheres para serviço dos homens, o sequestro dos africanos e sua venda como mercadoria para o serviço das lavouras dos brancos em toda a América, o uso e extermínio dos animais e a destruição dos ecossistemas naturais estiveram todos na mesma categoria de ações humanas, consideradas “necessárias” ao bem da “humanidade”, ao longo da história. Nossa moral tradicional nos ensina que onde há “necessidade” não há liberdade. Onde não há liberdade não há possibilidade de “juízos de valor”. Se as lavouras de algodão e cana-de-açúcar não podiam ser cultivadas senão pela mão-de-obra escravizada, então, concluíam intuitivamente os conservadores, a instituição da escravatura era necessariamente justificável do ponto de vista moral.


Seguindo a mesma lógica conservadora, os apologistas da dieta-padrão norte-americana, disseminada ao redor do planeta, entendem que, se a demanda por produtos de origem animal não desaparece, então a instituição da produção de animais para o abate ou derivados é moralmente justificável. Nos dois casos, a escravização de humanos e a escravização de animais não-humanos, a “necessidade” é considerada um argumento suficiente para justificar moralmente a instituição. Mas, o que ninguém investiga são as causas de tais “necessidades”.


A inocência moral do costume de escravizar africanos nas lavouras e negócios euro-americanos acabou na segunda metade do século XIX. Do mesmo modo, acabou a inocência no uso do trabalho das mulheres para agregar poder econômico, moral e político aos homens. Nossa era é a do fim da inocência moral no ato de comer animais e seus derivados. Embora continue a ser “natural” comer, já não há nada de natural no conteúdo de qualquer refeição que resulta de processamento industrial. O argumento de que a abolição da moral onívora é uma utopia, porque todos estamos enraizados em práticas cotidianas que a sustentam, segue a mesma lógica de defesa da escravização de africanos e exploração das mulheres.


Há um século e meio atrás também dizia-se que a escravidão não poderia ser abolida porque representaria a ruína da economia e da política internacional. Na verdade, escreve Fox, “[h]ouve um tempo não muito longe, no entanto, no qual muitas pessoas não apenas pensavam que a escravidão fosse algo justificável e mesmo sancionada por Deus, e estavam seguras de que elas – e a sociedade – não poderiam sobreviver sem ela. O que isso significava era que seu estilo de vida, bem-estar econômico, e posição de poder e privilégio não poderiam sobreviver sem ela, o que é algo bem diferente. [...] Mas ninguém afirma que a utilidade social da escravidão foi maior no tempo em que existiu. [...] Quando todos os benefícios e danos relevantes são levados em conta, fica evidente que a escravidão era uma instituição viciada e irremediavelmente cruel. [...] Mas somente há pouco tempo alguns ousaram sugerir que os animais são rotineiramente tratados como escravos e que há nisso um grau comparável ao da escravização humana.”


Nos últimos quarenta anos a dieta humana sofreu transformações em todos os seus aspectos: de regional passou a ser global. Com essas transformações deixou de ser típico de uma região comer certos alimentos. Também deixou de ser típico de cada região prepará-los de modo peculiar. Processados, todos os alimentos passaram a ser oferecidos a todos os olhos e estômagos, disseminando com isso as consequências da padronização que o processamento de alimentos sofre nesse terceiro milênio da civilização judaico-cristã. Se a quarta exigência da ética, sua finalidade, é buscar o benefício para aqueles que são afetados por nossas ações, as práticas humanas de alimentação devem passar também pelo crivo da ética, a exemplo das práticas econômicas e políticas que antes garantiam a um grupo privilegiado os benefícios de seus empreendimentos escravagistas e machistas, ao mesmo tempo em que para os afetados por esses empreendimentos nada se oferecia. Comer deixou de ser simplesmente um ato imposto por uma “necessidade natural”. Na verdade, o que se come, hoje, passou a ser imposto pelos “interesses industriais”.


O ato de comer perde a aura de inocência no momento em que os humanos têm à sua disposição as mais diversificadas fontes naturais de nutrientes vegetais, mas insistem em encher seu prato de pedaços de carcaças que constituíram organismos de indivíduos animais que viveram uma experiência particular de vida. Não há inocência alguma no ato de comer, quando o buffet do qual nos servimos oferece aos comedores uma variedade de preparados nos quais os produtos derivados do abate intensivo de animais e os subprodutos dos restos desse abate são apresentados lado a lado com produtos não derivados de animais. A inocência acaba quando, mesmo tendo diante de si alimentos nutrientes de origem vegetal, o comedor “escolhe” pôr em seu prato porções derivadas de animais. “Humanos têm a capacidade de pensar e sentir eticamente [escreve Michael Allen Fox]. Dessa perspectiva, não somos animais que não podem agir a não ser do modo ditado pela natureza; somos seres que podem deliberar e fazer escolhas. Apelar para nosso lugar “natural” na cadeia alimentar, ou para a “naturalidade” de comer animais, dado que rotineiramente eles se comem uns aos outros, é abdicar precisamente da responsabilidade de raciocinar e assumir as consequências de nossas ações.”


Continua...

*Sônia T. Felipe é doutora em Teoria Política e Filosofia Moral com pós-doutorado em Bioética-Ética Animal, co-fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência, co-autora de ‘A violência das mortes por decreto’ (Edufsc), ‘O corpo violentado’ (Edufsc), ‘Justiça como Eqüidade’ (Insular) e ‘Por uma questão de princípios’ (Boiteux), ‘Ética e experimentação animal: argumentos abolicionistas’ (Edufsc), colaboradora nas coletâneas ‘Éticas e políticas ambientais (Univ.Lisboa), ‘Filosofia e Direitos Humanos’ (Edufce), ‘Instrumento Animal’ (Canal 6). É professora e pesquisadora dos Programas de graduação e pós-graduação em Filosofia, e do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC. Investigadora Permanente do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Membro do Bioethics Institute da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento, Lisboa.