domingo, 13 de outubro de 2013

Ética no ato de comer

Sônia T. Felipe*

Talvez o ato de comer seja, entre tantos outros já analisados pela sociologia,a antropologia, a economia e a ciência política, o único considerado realmente natural, o que nos leva a pensar que, se comer é algo “natural”, nesta prática não cabe qualquer consideração ética. A filosofia não trata da questão do “comer”. Se é natural, então não há questão filosófica alguma para ser tratada, pensam os filósofos. Fazer uma reflexão ética implica em raciocínios que nos tiram do conforto da moralidade naturalizada. Esta admite como “valor” a ser preservado tudo o que se mantém pelo costume. Considera-se que aquilo que consegue manter-se como prática institucional em uma dada sociedade tem força e valor suficientes para continuar a ser mantido. A alimentação e as regras de ingestão, a forma como o alimento é apresentado ao comedor e a mecânica de sua produção, tudo isso é considerado “natural”. Então, concluímos, quando comemos não praticamos qualquer ato imoral.


Comer, nas sociedades industrializadas e nos grandes centros urbanos, no entanto, deixou de ser uma prática que interessa investigar apenas do ponto de vista antropológico e sociológico, isto é, com métodos meramente descritivos, destituídos de qualquer crítica e despidos de quaisquer juízos de valor.


O uso das mulheres para serviço dos homens, o sequestro dos africanos e sua venda como mercadoria para o serviço das lavouras dos brancos em toda a América, o uso e extermínio dos animais e a destruição dos ecossistemas naturais estiveram todos na mesma categoria de ações humanas, consideradas “necessárias” ao bem da “humanidade”, ao longo da história. Nossa moral tradicional nos ensina que onde há “necessidade” não há liberdade. Onde não há liberdade não há possibilidade de “juízos de valor”. Se as lavouras de algodão e cana-de-açúcar não podiam ser cultivadas senão pela mão-de-obra escravizada, então, concluíam intuitivamente os conservadores, a instituição da escravatura era necessariamente justificável do ponto de vista moral.


Seguindo a mesma lógica conservadora, os apologistas da dieta-padrão norte-americana, disseminada ao redor do planeta, entendem que, se a demanda por produtos de origem animal não desaparece, então a instituição da produção de animais para o abate ou derivados é moralmente justificável. Nos dois casos, a escravização de humanos e a escravização de animais não-humanos, a “necessidade” é considerada um argumento suficiente para justificar moralmente a instituição. Mas, o que ninguém investiga são as causas de tais “necessidades”.


A inocência moral do costume de escravizar africanos nas lavouras e negócios euro-americanos acabou na segunda metade do século XIX. Do mesmo modo, acabou a inocência no uso do trabalho das mulheres para agregar poder econômico, moral e político aos homens. Nossa era é a do fim da inocência moral no ato de comer animais e seus derivados. Embora continue a ser “natural” comer, já não há nada de natural no conteúdo de qualquer refeição que resulta de processamento industrial. O argumento de que a abolição da moral onívora é uma utopia, porque todos estamos enraizados em práticas cotidianas que a sustentam, segue a mesma lógica de defesa da escravização de africanos e exploração das mulheres.


Há um século e meio atrás também dizia-se que a escravidão não poderia ser abolida porque representaria a ruína da economia e da política internacional. Na verdade, escreve Fox, “[h]ouve um tempo não muito longe, no entanto, no qual muitas pessoas não apenas pensavam que a escravidão fosse algo justificável e mesmo sancionada por Deus, e estavam seguras de que elas – e a sociedade – não poderiam sobreviver sem ela. O que isso significava era que seu estilo de vida, bem-estar econômico, e posição de poder e privilégio não poderiam sobreviver sem ela, o que é algo bem diferente. [...] Mas ninguém afirma que a utilidade social da escravidão foi maior no tempo em que existiu. [...] Quando todos os benefícios e danos relevantes são levados em conta, fica evidente que a escravidão era uma instituição viciada e irremediavelmente cruel. [...] Mas somente há pouco tempo alguns ousaram sugerir que os animais são rotineiramente tratados como escravos e que há nisso um grau comparável ao da escravização humana.”


Nos últimos quarenta anos a dieta humana sofreu transformações em todos os seus aspectos: de regional passou a ser global. Com essas transformações deixou de ser típico de uma região comer certos alimentos. Também deixou de ser típico de cada região prepará-los de modo peculiar. Processados, todos os alimentos passaram a ser oferecidos a todos os olhos e estômagos, disseminando com isso as consequências da padronização que o processamento de alimentos sofre nesse terceiro milênio da civilização judaico-cristã. Se a quarta exigência da ética, sua finalidade, é buscar o benefício para aqueles que são afetados por nossas ações, as práticas humanas de alimentação devem passar também pelo crivo da ética, a exemplo das práticas econômicas e políticas que antes garantiam a um grupo privilegiado os benefícios de seus empreendimentos escravagistas e machistas, ao mesmo tempo em que para os afetados por esses empreendimentos nada se oferecia. Comer deixou de ser simplesmente um ato imposto por uma “necessidade natural”. Na verdade, o que se come, hoje, passou a ser imposto pelos “interesses industriais”.


O ato de comer perde a aura de inocência no momento em que os humanos têm à sua disposição as mais diversificadas fontes naturais de nutrientes vegetais, mas insistem em encher seu prato de pedaços de carcaças que constituíram organismos de indivíduos animais que viveram uma experiência particular de vida. Não há inocência alguma no ato de comer, quando o buffet do qual nos servimos oferece aos comedores uma variedade de preparados nos quais os produtos derivados do abate intensivo de animais e os subprodutos dos restos desse abate são apresentados lado a lado com produtos não derivados de animais. A inocência acaba quando, mesmo tendo diante de si alimentos nutrientes de origem vegetal, o comedor “escolhe” pôr em seu prato porções derivadas de animais. “Humanos têm a capacidade de pensar e sentir eticamente [escreve Michael Allen Fox]. Dessa perspectiva, não somos animais que não podem agir a não ser do modo ditado pela natureza; somos seres que podem deliberar e fazer escolhas. Apelar para nosso lugar “natural” na cadeia alimentar, ou para a “naturalidade” de comer animais, dado que rotineiramente eles se comem uns aos outros, é abdicar precisamente da responsabilidade de raciocinar e assumir as consequências de nossas ações.”


Continua...

*Sônia T. Felipe é doutora em Teoria Política e Filosofia Moral com pós-doutorado em Bioética-Ética Animal, co-fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência, co-autora de ‘A violência das mortes por decreto’ (Edufsc), ‘O corpo violentado’ (Edufsc), ‘Justiça como Eqüidade’ (Insular) e ‘Por uma questão de princípios’ (Boiteux), ‘Ética e experimentação animal: argumentos abolicionistas’ (Edufsc), colaboradora nas coletâneas ‘Éticas e políticas ambientais (Univ.Lisboa), ‘Filosofia e Direitos Humanos’ (Edufce), ‘Instrumento Animal’ (Canal 6). É professora e pesquisadora dos Programas de graduação e pós-graduação em Filosofia, e do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC. Investigadora Permanente do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Membro do Bioethics Institute da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento, Lisboa.

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